08 fevereiro, 2017

Revista Oitenta & Quatro: "Poesia? Cultura? Política?"





Ao mesmo tempo que havia um ambiente de efervescência intelectual em 1984, também havia um ritmo muito leve e interiorano em nossa volta. Era a mistura de uma capital provinciana e longe de tudo, com poucas livrarias, alguns cinemas fechando, um teatro oficial e pouco disponível, e também a sequência de greves de alunos, professores e servidores da universidade, que defendia a “qualidade na educação” e a liberdade de expressão. Nesse ano o movimento das Diretas Já tomou o país e discutir política era a alegria de todos os dias. Discutir política significava ser ousado, corajoso, significava desafiar um ambiente opressor que vinha da ditadura militar. No entanto muitos de nós nem tinham a noção do que era a ditadura pois mal começávamos a entender algo sobre eleições e sobre o poder de governar. O que sabíamos era de “orelhada”, de ouvir falar, de ter lido em livros e manifestos.

Na universidade os grupos tentavam se organizar para “tomar o poder”, e a formação de novos partidos políticos, com destaque para o Partido dos Trabalhadores, era a realidade mais entusiamente. Centenas, milhares de nós, estudantes, assinamos as listas de apoio ao PT que trazia em seus discursos a canção da moral, da ética e da justiça, que é o que embala o coração dos jovens, desde sempre. Linhas de interpretação ideológica diferentes disputavam os espaços, criando “aparelhos” em que a entrada se dava por um “codinome”, afinal os militares tinham escutas por todo lado e era muito arriscado, diziam. Os líderes desses aparelhos e linhas se revezavam nos discursos das assembleias de estudantes, arrancando aplausos e apoio dos estudantes sentados e espalhados em frente à reitoria. Para na sequência sair em passeata pelo centro da cidade, cantando os chavões que nos ensinavam: “não fique aí parado, venha para nosso lado”. E então acontecia alguma greve que duraria semanas ou meses, afetando basicamente apenas o dia a dia dos estudantes, pois não havia grandes consequências para os salários dos professores e servidores. Várias vezes obtiveram aumentos salariais, e também maior disponibilidade de tempo para a pesquisa, o que levaria à melhoria educacional, pelo menos teoricamente. Passados trinta anos, resultou em professores que ficam em casa mais da metade da semana, projetos de pesquisa para preencher requisitos da CAPES e indicadores educacionais e de inovação que não fazem grande inveja em parte alguma.

Éramos jovens de vinte e poucos anos, e fomos embalados naquele ritmo. Mas o ceticismo e o romantismo dos artistas e poetas nos atropelavam igualmente, então não acreditávamos em nenhum movimento e nosso lema era ira “contra”, incluindo ir contra os “aparelhos” dos colegas, obviamente. E tínhamos o desejo de colocar algo concreto, uma expressão concreta, um “manifesto”, como sempre se fez nas artes. Por isso um certo dia nos encontramos, Aldy, Fifo e eu, e decidimos fazer uma publicação para colocar nossos poemas e ideias, com total liberdade. Uma publicação que fosse ao mesmo tempo duradoura e autossuficiente. A ideia da revista foi algo natural e um ponto de presença para se contrapor aos discursos de palanque e aos poetas de bar. Era uma prova real de que sabíamos produzir, e não apenas falar. Problema que afeta tantos e tantos dos jovens artistas, incapazes de se deslocar do discurso ao ato.

O ambiente cultural não era dos mais pujantes. Fora das ruas da universidade, que na época não tinha cercas e nem os vendedores de drogas vindos dos morros da região, a cultura era o eco de alguma apresentação distante, algum livro emprestado, algum teatro de rua. Na cidade havia quase nada, e mesmo as expressões populares como o Boi de Mamão corriam o risco de extinção. O Cineclube de São José veio para o CIC e alguma coisa do Cinema Novo apareceu aqui e ali, com décadas de atraso, mas ainda sintonizado com o ambiente político, pois esse era o estilo do movimento e por isso envelheceu prematuramente. A carência era tão grande que qualquer coisa era motivo de festa. O filme “Je vous salue, Marie” havia sido proibido pelo governo e pela igreja, mas alguém conseguiu uma cópia pirata em vídeo, e assistimos numa televisão em preto e branco de vinte polegadas no auditório do Centro de Convivência, para uma plateia lotada de mais de 300 pessoas. Num enorme silêncio, pois se já era difícil enxergar, ouvir era impossível. Em francês. O filme não teve espectadores à altura, pois o que importava era a contravenção de ver o filme proibido. E o perigo de aparecerem uns milicos pra desligar tudo e dar umas borrachadas (não tivemos essa alegria e provavelmente nos desprezavam). Além disso havia ainda manifestações de poesia, como a Revista Discente que a universidade publicava, e o Varal Literário com dezenas de poemas ao vento, literalmente. Não eram propriamente os lugares que desejávamos para publicar nossos poemas super revolucionários e impactantes, mas era o que tínhamos no momento. E depois de publicados os poemas já não pareciam tão revolucionários e impactantes, aprendizado dolorido e necessário. E assim, catando sinais, catando ideias, organizando um ou outro verso ou imagem que nasceu em rabiscos ou em alguma de nossas leituras, nasceu a Oitenta & Quatro.

A premissa inaugural era fazer algo totalmente novo. No entanto já estávamos cientes dos limites e os limites seriam incorporados em nossas invençõe e inovações. Trabalhar com a criação a partir dos limites foi um grande aprendizado de paciência e humildade, sem perder a expectativa da grandeza. E as premissas se mexeram dentro de nós para que tentássemos conquistar simultaneamente a simplicidade e a grandeza. Produzir, entregar, fazer as coisas no prazo, e com a maior liberdade e criatividade. Assim partimos para criar o número de lançamento, já com data na capa: 15 de maio de 1984.

Abandonamos por umas semanas a rotina e nos dedicamos integralmente à produção do primeiro número, que seria impresso na gráfica da própria universidade que tanto criticávamos. Nos deram as dicas básicas de produção, o papel reticulado para colarmos os textos e imagens, informações sobre como corrigir os originais e obter as provas, a melhor dimensão para aproveitamento de papel, e mesmo bancando toda a produção, censura zero. O espírito era o de dar asas à garotada, e batemos as asas do melhor jeito que pudemos. Lição que aprendemos sobre a distinção entre liberdade falada em assembleias políticas e a liberdade real de deixar ser, tão contrastantes. Porém éramos durões e tínhamos uma imagem a manter frente aos pares, tão importantes, e nenhuma linha de agradecimento publicamos à gráfica e seu pessoal. E nem aos primeiros anunciantes. E assim segue em frente a Justiça.

Sendo aquele o primeiro número era preciso ter um manifesto. E teve a “Estética do Sentimento”. E também um “Enquadramento Geral”. E um “Gênesis”. Não faltou manifesto de contestação e cada editor escreveu o que podia de melhor e mais radical. Sendo que a estética do sentimento fazia nossa principal defesa da poesia. Era a poesia, e não a política, que mudaria o mundo. Criticamos então os políticos do poder, criticamos os que chamamos de reacionários, criticamos todos da esquerda, os religiosos, os poetas de bar, os românticos, e por aí afora. Usamos as palavras da moda contestatória da época para fazer a nossa contestação, e por esse uso da linguagem acabamos entrando no mesmo barco. Intuitivamente percebemos isso, e queríamos invadir algum outro espaço da linguagem dentro das nossas limitações práticas e teóricas. O editorial, para tentar confundir os leitores, era um conto do Jéferson mas assinado pelo “intelectual de plantão” Calixto Manoel. Que era o nome do pai do Jéferson. Reservamos finalmente para a capa o que consideramos o maior impacto: a foto do guerrilheiro Capitão Carlos Lamarca, militar desertor morto pela ditadura militar. Não sei de onde tiramos a foto, que ampliamos usando fotocópias até chegar à dimensão de mais da metade da capa. Entre outras coisas, considerávamos a sua imagem a de um homem comum em um típico retrato 3x4. E assim montamos o número de lançamento, datilografando os textos em colunas medidas com régua, recortando tiras, colando pedaços e desenhando a nanquim diretamente na base de reticulado azul claro. Reduções e ampliações de textos e imagens eram feitas com fotocopiadoras, que já tinham esses recursos de dimensionamento. Títulos eram feitos à mão, com letraset ou com palavras cortadas de revistas e jornais, que afinal de contas eram nossos modelos de design gráfico. Mesmo com todas as variações de larguras de colunas, de fontes, de inclinações, o resultado visual não ficou muito longe de um jornal diário convencional. E assim foi para a gráfica e dias depois lá estávamos nós muito felizes com nosso primeiro grande evento intelectual.

O passo seguinte foi colocar nosso bloco na rua, vendendo exemplares de mão em mão. Chegamos a fazer os cálculos de faturamento com a venda de mil exemplares, tínhamos um futuro nas mãos. Em Florianópolis o ponto mais importante de venda foi a entrada do Centro Integrado de Cultura, pois ali passavam os espectadores do cinema e do teatro, que por sinal eram os alvos de nossas críticas. Mas não vimos contradição em atacar um grupo e ao mesmo tempo tentar vender e tentar ser reconhecido por esse mesmo grupo. Bater num suposto adversário para ser por ele valorizado, como é a praxe. Não sei se o adversário se sentiu muito incomodado, mas com certeza não deu lá muito valor. E o Lamarca da capa era mais digno de pena do que de revolta. Depois de Florianópolis fomos lançar em Curitiba, e o local ideal era o Largo da Ordem no domingo pela manhã, pois na época a “cultura” circulava por ali para um chopp e um papo distraído na Livraria Dario Vellozo, perto da tipografia da Feira do Poeta, no meio do agito da feira de artesanato. Cercávamos todos em frente à porta da livraria tentando vender o jornal, incluindo o poeta pop Leminski, que não comprou, e o ainda não pop Valêncio Xavier, que comprou, leu, e por muito tempo ainda se lembraria da Oitenta & Quatro. Depois de tudo fizemos as contas, não vendemos muito, e havia um novo número para criar.

A nova data estava marcada: 15 de junho de 1984. E a número dois iria crescer das oito páginas originais para doze, também pela gráfica da universidade e com muitos anunciantes. Muitas lições foram aprendidas (mas não melhoramos muito em humildade) e houve uma radicalização libertária em relação à questão do design gráfico. Na prática os textos em colunas quase acabaram, e no seu lugar muitas imagens, textos manuscritos, ilustrações e ficção. Ficaram de lado os manifestos. O tom de crítica entrou na ficção, e a ficção entrou na fotonovela, na pesquisa de percepção pública e nos poemas em verso e prosa. Tentamos ser “sintéticos e desavergonhados”, inclusive incorporando colaboradores (amigos convidados). Nosso maior valor era a capa, que abandonou o estilo jornal e tentou ser mais “revista”. Noites e noites reunidos na produção, como da vez anterior, e criação coletiva do design. Isso constrói amizades. Não sabíamos como eram feitas as outras revistas marginais do país e do mundo, nem mesmo sabíamos quais eram elas, a não ser as de muitas décadas atrás e que já tinham virado história. Voltando à capa: era o valor, era o impacto. E dessa vez nada de imagem política, nada de qualquer relação com os acontecimentos do momento, a não ser um “insensato pesadelo utópico”, criação com palavras recortadas de inúmeras revistas e jornais que íamos recolhendo. Se a palavra nos apaixonava, era escolhida. E assim surgiu o poema da capa junto ao maravilhoso nome do livro de Conrad, grafismos florais e indígenas, com o título da revista no rodapé, só pra contrariar.

Mesclar gêneros, estilos, fontes, riscos, imagens, isso era nosso modo de contestar e criar, e me parece nítido o contraste e o crescimento em relação à número um. O discurso político quase saiu de cena, a não ser pelas imagens dos homens públicos, sendo Figueiredo o campeão em aparições e até mesmo Getúlio teve vez. No entanto o tom do paradoxo parece ser preponderante, e na pesquisa de percepção pública tudo é incerteza. Não estávamos certos de que o professor universitário fosse um idealista e o militar não fosse. Não estávamos certos de que o político de carreira fosse um político e a artista não fosse. Não estávamos certo da classificação do burguês e do proletário, do povo e do não-povo, de toda essa distinção tão bem marcada por aqueles que estão absolutamente certos de alguma coisa. E assim a número dois nasceu, vagando rumo ao absolutamente incerto.

Queríamos mais na número três, e ganhamos um interstício para poder trabalhar nas agora dezesseis páginas, e o lançamento ficou marcado para dois meses depois: 15 de agosto de 1984. O movimento das Diretas Já estava ficando para trás, e dissemos que a revista Oitenta & Quatro não foi para as bibliotecas por não caber nas preteleiras. Mas tudo cabe na biblioteca universal do homem. Nesse número aprofundamos a ficção, e quando houve discurso revolucionário era pra ser contra a revolução, e contra a direita, e contra a esquerda, e o que mais aparecesse do tipo. Nos esforçamos para contradizer e nos contradizer, tudo ao mesmo tempo. Dedicamos à poesia o maior valor e todos os textos nossos e dos colaboradores giraram nesse eixo.

A capa três foi nosso orgulho, imaginada e construída a seis mãos, e pela primeira vez o editorial foi um texto dos editores, não um conto. Esse editorial ataca tudo que vê pela frente: o Grupo Teatro Novo da UFSC, a Superintendência do CIC, o Departamento Cultural da UFSC (mas a gráfica continuava sendo a nossa base de impressão), a Pós Graduação de Literatura Brasileira e o Professor Raul Antelo (que provavelmente nem soube ou nem considerou), a UFSC em geral, o poeta Olavo Bilac, o movimento estudantil e Chico Buarque (que já identificávamos com o pior da esquerda), a Esquerda, a Igreja, e paramos por aí por falta de espaço. O editorial finaliza dizendo que “ser poeta é ter coragem, o resto é decadente, conservador e reacionário”, e que “essa revista é um poema”, recheada de flores e ilustrações art nouveau, gestos e fotos.

Nesse trajeto da revista um até a três nosso empenho se deslocou de uma visão mais geral, que envolvia criação, produção e veiculação, para uma visão estrita de criação. O sabor da criação nos tomou por inteiro e isso passava pelo desenho de cada página, pela seleção de cada texto e cada colaboração, pela integração do conjunto e da mensagem. A venda de mão em mão, a distribuição e o contato com o público foram ficando de lado, e isso indicou um final à vista, que coincidia com o final de ano e o final de várias etapas de nossas vidas particulares.

Nesse número voltou o manifesto, mas quase um anti-manifesto, pois dois textos replicaram a Estética do Sentimento da primeira Oitenta & Quatro e a própria Estética do Sentimento retornou nas últimas páginas com uma “segunda parte”, radicalizando a defesa da poesia, o que na prática fecha o discurso do editorial das primeiras páginas. E assim, abrindo e fechando, a Oitenta & Quatro acabou.

A revista, que na capa era da Ilha de Santa Catarina e no miolo era do Desterro, nunca Florianópolis, colocava as fictícias Editoras Semprelo e Sol e Lua como responsáveis pela publicação, pois eram as “duas maiores editoras de literatura independente do sul do país”. Tudo tinha que ser o maior e o melhor, pois inaugurávamos ali a nova poesia. Não foi por falta de pretensão que a revista acabou. Mas esse discurso misturado de seriedade e fanfarronice moveu nossa alegria por muitos meses. Lições aprendidas?

Algumas coisas ficaram para sempre, as coisas mais simples. A amizade e o companheirismo, os exemplares guardados nas gavetas, as lembranças da produção noites adentro, os sonhos conjuntos de fazer algo que perdurasse, independente de ser ou não a “revolução da poesia”. Aprendemos a construir um projeto e transformá-lo em um objeto palpável e independente, que passou a circular em outras mãos e outras interpretações. Aprendemos a trabalhar em grupo e construir revistas, pois a seguir vieram algumas e outras poderão ainda vir. Tivemos coragem de mostrar nossos poemas e xingamentos, algo mais fácil de fazer quando se está num coletivo, e não sozinho. Aprendemos a projetar durante o próprio processo do projeto, com desenhos, esquemas, diagramas e rascunhos, antecipando o que viria a ser chamado de design thinking décadas depois. Aprendemos que as promessas políticas dos revolucionários eram as mesmas fanfarronices que nós talvez estivéssemos defendendo, com a absoluta diferença de sermos a atuarmos como indivíduos e não como a expressão de outrem ou de grupos “centralistas democráticos”, seja lá que espúrio significado isso possa ter. Passados trinta anos o espírito político que esteve circundando a revista mostrou o seu vazio. Naqueles anos a novidade do PT vendia estrelinhas e broches para angariar fundos e vendia sonhos para angariar votos. O resultado é que não há mais broches e estrelinhas para vender. Mas o brasileiro é um ser primitivo, que mal entende as leis para poder interpretá-las, mal entende as palavras para poder respeitá-las. E vice-versa. Lições aprendidas?

Na revolução política o processo está no coletivo. Já a revolução poética é local, está em cada pessoa, escritor ou leitor, em cada íntimo. A Oitenta & Quatro passeou entre esses tópicos, mas almejando uma revolução poética no conjunto da nossa cultura, copiando os manifestos que a arte projetou por décadas. Manifestos que copiaram as palavras de ordem dos manifestos políticos e suas pretendidas revoluções. Fomos nessa rabeira. E a transformação política do país nos trinta anos que se seguiram repisou todas as velhas tramas de uma mesma ficção, pois nada mais é que o assentamento sobre o brasileiro de sempre, esse primitivo, nem cordial nem bravo, mas alguém imerso na cultura do jeitinho, do “eu primeiro” e do improviso (que já chamaram de “criatividade”). Restou por fim a defesa radical da poética, que fecha o ciclo da revista e vai se encontrar apenas em cada um, na solidão do indivíduo.

(Este texto faz parte do livro "Revista Oitenta & Quatro: Literatura, arte, cultura e contestação", 2016, Mauro Faccioni Filho, ISBN 978-85-922224-0-6. )