Ao
mesmo tempo que havia um ambiente de efervescência intelectual em
1984, também havia um ritmo muito leve e interiorano em nossa volta.
Era a mistura de uma capital provinciana e longe de tudo, com poucas
livrarias, alguns cinemas fechando, um teatro oficial e pouco
disponível, e também a sequência de greves de alunos, professores
e servidores da universidade,
que defendia a “qualidade na educação” e a liberdade de
expressão. Nesse ano o movimento das Diretas
Já tomou o país e discutir
política era a alegria de todos os dias. Discutir política
significava ser ousado, corajoso, significava desafiar um ambiente
opressor que vinha da ditadura militar. No entanto muitos de nós nem
tinham a noção do que era a ditadura pois mal começávamos a
entender algo sobre eleições e sobre o poder de governar. O que
sabíamos era de “orelhada”, de ouvir falar, de ter lido em
livros e manifestos.
Na
universidade os grupos tentavam se organizar para “tomar o poder”,
e a formação de novos partidos políticos, com destaque para o
Partido dos
Trabalhadores, era a realidade mais
entusiamente. Centenas, milhares de nós, estudantes, assinamos as
listas de apoio ao PT que trazia em seus discursos a canção da
moral, da ética e da justiça, que é o que embala o coração dos
jovens, desde sempre. Linhas de interpretação ideológica
diferentes disputavam os espaços, criando “aparelhos” em que a
entrada se dava por um “codinome”, afinal os militares tinham
escutas por todo lado e era muito arriscado, diziam. Os líderes
desses aparelhos e linhas se revezavam nos discursos das assembleias
de estudantes, arrancando aplausos e apoio dos estudantes sentados e
espalhados em frente à reitoria. Para na sequência sair em passeata
pelo centro da cidade, cantando os chavões que nos ensinavam: “não
fique aí parado, venha para nosso lado”. E então acontecia alguma
greve que duraria semanas ou meses, afetando basicamente apenas o dia
a dia dos estudantes, pois não havia grandes consequências para os
salários dos professores e servidores. Várias vezes obtiveram
aumentos salariais, e também maior disponibilidade de tempo para a
pesquisa, o que levaria à melhoria educacional, pelo menos
teoricamente. Passados trinta anos, resultou em professores que ficam
em casa mais da metade da semana, projetos de pesquisa para preencher
requisitos da CAPES
e indicadores educacionais e de inovação que não fazem grande
inveja em parte alguma.
Éramos jovens de vinte e poucos anos, e fomos embalados naquele
ritmo. Mas o ceticismo e o romantismo dos artistas e poetas nos
atropelavam igualmente, então não acreditávamos em nenhum
movimento e nosso lema era ira “contra”, incluindo ir contra os
“aparelhos” dos colegas, obviamente. E tínhamos o desejo de
colocar algo concreto, uma expressão concreta, um “manifesto”,
como sempre se fez nas artes. Por isso um certo dia nos encontramos,
Aldy, Fifo e eu, e decidimos fazer uma publicação para colocar
nossos poemas e ideias, com total liberdade. Uma publicação que
fosse ao mesmo tempo duradoura e autossuficiente. A ideia da revista
foi algo natural e um ponto de presença para se contrapor aos
discursos de palanque e aos poetas de bar. Era uma prova real de que
sabíamos produzir, e não apenas falar. Problema que afeta tantos e
tantos dos jovens artistas, incapazes de se deslocar do discurso ao
ato.
O
ambiente cultural não era dos mais pujantes. Fora das ruas da
universidade, que na época não tinha cercas e nem os vendedores de
drogas vindos dos morros da região, a cultura era o eco de alguma
apresentação distante, algum livro emprestado, algum teatro de rua.
Na cidade havia quase nada, e mesmo as expressões populares como o
Boi de Mamão corriam
o risco de extinção. O Cineclube de São José veio para o CIC
e alguma coisa do Cinema Novo apareceu aqui e ali, com décadas de
atraso, mas ainda sintonizado com o ambiente político, pois esse era
o estilo do movimento e por isso envelheceu prematuramente. A
carência era tão grande que qualquer coisa era motivo de festa. O
filme “Je vous
salue, Marie” havia sido proibido
pelo governo e pela igreja, mas alguém conseguiu uma cópia pirata
em vídeo, e assistimos numa televisão em preto e branco de vinte
polegadas no auditório do Centro de Convivência, para uma plateia
lotada de mais de 300 pessoas. Num enorme silêncio, pois se já era
difícil enxergar, ouvir era impossível. Em francês. O filme não
teve espectadores à altura, pois o que importava era a contravenção
de ver o filme proibido. E o perigo de aparecerem uns milicos pra
desligar tudo e dar umas borrachadas (não tivemos essa alegria e
provavelmente nos desprezavam). Além disso havia ainda manifestações
de poesia, como a Revista Discente que a universidade publicava, e o
Varal Literário com dezenas de poemas ao vento, literalmente. Não
eram propriamente os lugares que desejávamos para publicar nossos
poemas super revolucionários e impactantes, mas era o que tínhamos
no momento. E depois de publicados os poemas já não pareciam tão
revolucionários e impactantes, aprendizado dolorido e necessário. E
assim, catando sinais, catando ideias, organizando um ou outro verso
ou imagem que nasceu em rabiscos ou em alguma de nossas leituras,
nasceu a Oitenta & Quatro.
A premissa inaugural era fazer algo totalmente novo. No entanto já
estávamos cientes dos limites e os limites seriam incorporados em
nossas invençõe e inovações. Trabalhar com a criação a partir
dos limites foi um grande aprendizado de paciência e humildade, sem
perder a expectativa da grandeza. E as premissas se mexeram dentro de
nós para que tentássemos conquistar simultaneamente a simplicidade
e a grandeza. Produzir, entregar, fazer as coisas no prazo, e com a
maior liberdade e criatividade. Assim partimos para criar o número
de lançamento, já com data na capa: 15 de maio de 1984.
Abandonamos por umas semanas a rotina e nos dedicamos integralmente à
produção do primeiro número, que seria impresso na gráfica da
própria universidade que tanto criticávamos. Nos deram as dicas
básicas de produção, o papel reticulado para colarmos os textos e
imagens, informações sobre como corrigir os originais e obter as
provas, a melhor dimensão para aproveitamento de papel, e mesmo
bancando toda a produção, censura zero. O espírito era o de dar
asas à garotada, e batemos as asas do melhor jeito que pudemos.
Lição que aprendemos sobre a distinção entre liberdade falada em
assembleias políticas e a liberdade real de deixar ser, tão
contrastantes. Porém éramos durões e tínhamos uma imagem a manter
frente aos pares, tão importantes, e nenhuma linha de agradecimento
publicamos à gráfica e seu pessoal. E nem aos primeiros
anunciantes. E assim segue em frente a Justiça.
Sendo
aquele o primeiro número era preciso ter um manifesto. E teve a
“Estética do Sentimento”. E também um “Enquadramento Geral”.
E um “Gênesis”. Não faltou manifesto de contestação e cada
editor escreveu o que podia de melhor e mais radical. Sendo que a
estética do sentimento fazia nossa principal defesa da poesia. Era a
poesia, e não a política, que mudaria o mundo. Criticamos então os
políticos do poder, criticamos os que chamamos de reacionários,
criticamos todos da esquerda, os religiosos, os poetas de bar, os
românticos, e por aí afora. Usamos as palavras da moda
contestatória da época para fazer a nossa contestação, e por esse
uso da linguagem acabamos entrando no mesmo barco. Intuitivamente
percebemos isso, e queríamos invadir algum outro espaço da
linguagem dentro das nossas limitações práticas e teóricas. O
editorial, para tentar confundir os leitores, era um conto do
Jéferson mas assinado pelo “intelectual de plantão” Calixto
Manoel. Que era o nome do pai do Jéferson. Reservamos finalmente
para a capa o que consideramos o maior impacto: a foto do
guerrilheiro Capitão Carlos Lamarca, militar desertor morto pela
ditadura militar. Não sei de onde tiramos a foto, que ampliamos
usando fotocópias até chegar à dimensão de mais da metade da
capa. Entre outras coisas, considerávamos a sua imagem a de um homem
comum em um típico retrato 3x4. E assim montamos o número de
lançamento, datilografando os textos em colunas medidas com régua,
recortando tiras, colando pedaços e desenhando a nanquim diretamente
na base de reticulado azul claro. Reduções e ampliações de textos
e imagens eram feitas com fotocopiadoras, que já tinham esses
recursos de dimensionamento. Títulos eram feitos à mão, com
letraset
ou com palavras cortadas de revistas e jornais, que afinal de contas
eram nossos modelos de design gráfico. Mesmo com todas as variações
de larguras de colunas, de fontes, de inclinações, o resultado
visual não ficou muito longe de um jornal diário convencional. E
assim foi para a gráfica e dias depois lá estávamos nós muito
felizes com nosso primeiro grande evento intelectual.
O
passo seguinte foi colocar nosso bloco na rua, vendendo exemplares de
mão em mão. Chegamos a fazer os cálculos de faturamento com a
venda de mil exemplares, tínhamos um futuro nas mãos. Em
Florianópolis o ponto mais importante de venda foi a entrada do
Centro Integrado de Cultura, pois ali passavam os espectadores do
cinema e do teatro, que por sinal eram os alvos de nossas críticas.
Mas não vimos contradição em atacar um grupo e ao mesmo tempo
tentar vender e tentar ser reconhecido por esse mesmo grupo. Bater
num suposto adversário para ser por ele valorizado, como é a praxe.
Não sei se o adversário se sentiu muito incomodado, mas com certeza
não deu lá muito valor. E o Lamarca da capa era mais digno de pena
do que de revolta. Depois de Florianópolis fomos lançar em
Curitiba, e o local ideal era o Largo da Ordem no domingo pela manhã,
pois na época a “cultura” circulava por ali para um chopp e um
papo distraído na Livraria Dario Vellozo, perto da tipografia da
Feira do Poeta, no meio do agito da feira de artesanato. Cercávamos
todos em frente à porta da livraria tentando vender o jornal,
incluindo o poeta pop Leminski,
que não comprou, e o ainda não pop Valêncio
Xavier, que comprou, leu, e por
muito tempo ainda se lembraria da Oitenta & Quatro. Depois de
tudo fizemos as contas, não vendemos muito, e havia um novo número
para criar.
A nova data estava marcada: 15 de junho de 1984. E a número dois
iria crescer das oito páginas originais para doze, também pela
gráfica da universidade e com muitos anunciantes. Muitas lições
foram aprendidas (mas não melhoramos muito em humildade) e houve uma
radicalização libertária em relação à questão do design
gráfico. Na prática os textos em colunas quase acabaram, e no seu
lugar muitas imagens, textos manuscritos, ilustrações e ficção.
Ficaram de lado os manifestos. O tom de crítica entrou na ficção,
e a ficção entrou na fotonovela, na pesquisa de percepção pública
e nos poemas em verso e prosa. Tentamos ser “sintéticos e
desavergonhados”, inclusive incorporando colaboradores (amigos
convidados). Nosso maior valor era a capa, que abandonou o estilo
jornal e tentou ser mais “revista”. Noites e noites reunidos na
produção, como da vez anterior, e criação coletiva do design.
Isso constrói amizades. Não sabíamos como eram feitas as outras
revistas marginais do país e do mundo, nem mesmo sabíamos quais
eram elas, a não ser as de muitas décadas atrás e que já tinham
virado história. Voltando à capa: era o valor, era o impacto. E
dessa vez nada de imagem política, nada de qualquer relação com os
acontecimentos do momento, a não ser um “insensato pesadelo
utópico”, criação com palavras recortadas de inúmeras revistas
e jornais que íamos recolhendo. Se a palavra nos apaixonava, era
escolhida. E assim surgiu o poema da capa junto ao maravilhoso nome
do livro de Conrad, grafismos florais e indígenas, com o título da
revista no rodapé, só pra contrariar.
Mesclar gêneros, estilos, fontes, riscos, imagens, isso era nosso
modo de contestar e criar, e me parece nítido o contraste e o
crescimento em relação à número um. O discurso político quase
saiu de cena, a não ser pelas imagens dos homens públicos, sendo
Figueiredo o campeão em aparições e até mesmo Getúlio teve vez.
No entanto o tom do paradoxo parece ser preponderante, e na pesquisa
de percepção pública tudo é incerteza. Não estávamos certos de
que o professor universitário fosse um idealista e o militar não
fosse. Não estávamos certos de que o político de carreira fosse um
político e a artista não fosse. Não estávamos certo da
classificação do burguês e do proletário, do povo e do não-povo,
de toda essa distinção tão bem marcada por aqueles que estão
absolutamente certos de alguma coisa. E assim a número dois nasceu,
vagando rumo ao absolutamente incerto.
Queríamos mais na número três, e ganhamos um interstício para
poder trabalhar nas agora dezesseis páginas, e o lançamento ficou
marcado para dois meses depois: 15 de agosto de 1984. O movimento das
Diretas Já estava ficando para trás, e dissemos que a revista
Oitenta & Quatro não foi para as bibliotecas por não caber nas
preteleiras. Mas tudo cabe na biblioteca universal do homem. Nesse
número aprofundamos a ficção, e quando houve discurso
revolucionário era pra ser contra a revolução, e contra a direita,
e contra a esquerda, e o que mais aparecesse do tipo. Nos esforçamos
para contradizer e nos contradizer, tudo ao mesmo tempo. Dedicamos à
poesia o maior valor e todos os textos nossos e dos colaboradores
giraram nesse eixo.
A capa três foi nosso orgulho, imaginada e construída a seis mãos,
e pela primeira vez o editorial foi um texto dos editores, não um
conto. Esse editorial ataca tudo que vê pela frente: o Grupo Teatro
Novo da UFSC, a Superintendência do CIC, o Departamento Cultural da
UFSC (mas a gráfica continuava sendo a nossa base de impressão), a
Pós Graduação de Literatura Brasileira e o Professor Raul Antelo
(que provavelmente nem soube ou nem considerou), a UFSC em geral, o
poeta Olavo Bilac, o movimento estudantil e Chico Buarque (que já
identificávamos com o pior da esquerda), a Esquerda, a Igreja, e
paramos por aí por falta de espaço. O editorial finaliza dizendo
que “ser poeta é ter coragem, o resto é decadente, conservador e
reacionário”, e que “essa revista é um poema”, recheada de
flores e ilustrações art nouveau, gestos e fotos.
Nesse trajeto da revista um até a três nosso empenho se deslocou de
uma visão mais geral, que envolvia criação, produção e
veiculação, para uma visão estrita de criação. O sabor da
criação nos tomou por inteiro e isso passava pelo desenho de cada
página, pela seleção de cada texto e cada colaboração, pela
integração do conjunto e da mensagem. A venda de mão em mão, a
distribuição e o contato com o público foram ficando de lado, e
isso indicou um final à vista, que coincidia com o final de ano e o
final de várias etapas de nossas vidas particulares.
Nesse número voltou o manifesto, mas quase um anti-manifesto, pois
dois textos replicaram a Estética do Sentimento da primeira Oitenta
& Quatro e a própria Estética do Sentimento retornou nas
últimas páginas com uma “segunda parte”, radicalizando a defesa
da poesia, o que na prática fecha o discurso do editorial das
primeiras páginas. E assim, abrindo e fechando, a Oitenta &
Quatro acabou.
A revista, que na capa era da Ilha de Santa Catarina e no miolo era
do Desterro, nunca Florianópolis, colocava as fictícias Editoras
Semprelo e Sol e Lua como responsáveis pela publicação, pois eram
as “duas maiores editoras de literatura independente do sul do
país”. Tudo tinha que ser o maior e o melhor, pois inaugurávamos
ali a nova poesia. Não foi por falta de pretensão que a revista
acabou. Mas esse discurso misturado de seriedade e fanfarronice moveu
nossa alegria por muitos meses. Lições aprendidas?
Algumas coisas ficaram para sempre, as coisas mais simples. A amizade
e o companheirismo, os exemplares guardados nas gavetas, as
lembranças da produção noites adentro, os sonhos conjuntos de
fazer algo que perdurasse, independente de ser ou não a “revolução
da poesia”. Aprendemos a construir um projeto e transformá-lo em
um objeto palpável e independente, que passou a circular em outras
mãos e outras interpretações. Aprendemos a trabalhar em grupo e
construir revistas, pois a seguir vieram algumas e outras poderão
ainda vir. Tivemos coragem de mostrar nossos poemas e xingamentos,
algo mais fácil de fazer quando se está num coletivo, e não
sozinho. Aprendemos a projetar durante o próprio processo do
projeto, com desenhos, esquemas, diagramas e rascunhos, antecipando o
que viria a ser chamado de design thinking décadas depois.
Aprendemos que as promessas políticas dos revolucionários eram as
mesmas fanfarronices que nós talvez estivéssemos defendendo, com a
absoluta diferença de sermos a atuarmos como indivíduos e não como
a expressão de outrem ou de grupos “centralistas democráticos”,
seja lá que espúrio significado isso possa ter. Passados trinta
anos o espírito político que esteve circundando a revista mostrou o
seu vazio. Naqueles anos a novidade do PT vendia estrelinhas e
broches para angariar fundos e vendia sonhos para angariar votos. O
resultado é que não há mais broches e estrelinhas para vender. Mas
o brasileiro é um ser primitivo, que mal entende as leis para poder
interpretá-las, mal entende as palavras para poder respeitá-las. E
vice-versa. Lições aprendidas?
Na revolução política o processo está no coletivo. Já a
revolução poética é local, está em cada pessoa, escritor ou
leitor, em cada íntimo. A Oitenta & Quatro passeou entre esses
tópicos, mas almejando uma revolução poética no conjunto da nossa
cultura, copiando os manifestos que a arte projetou por décadas.
Manifestos que copiaram as palavras de ordem dos manifestos políticos
e suas pretendidas revoluções. Fomos nessa rabeira. E a
transformação política do país nos trinta anos que se seguiram
repisou todas as velhas tramas de uma mesma ficção, pois nada mais
é que o assentamento sobre o brasileiro de sempre, esse primitivo,
nem cordial nem bravo, mas alguém imerso na cultura do jeitinho, do
“eu primeiro” e do improviso (que já chamaram de
“criatividade”). Restou por fim a defesa radical da poética, que
fecha o ciclo da revista e vai se encontrar apenas em cada um, na
solidão do indivíduo.
(Este texto faz parte do livro "Revista Oitenta & Quatro: Literatura, arte, cultura e contestação", 2016, Mauro Faccioni Filho, ISBN 978-85-922224-0-6. )